Quando a gente é criança o mundo parece ter outro sentido. Costumava sentir mais o sabor das coisas. Gostava muito de comer bem devagar algum tipo de chocolate e me parecia que o mundo poderia acabar naquele momento, contudo não deixaria de estar sentindo o prazer do delicioso doce derretendo em minha boca. E as férias? Tinha um sentido tão forte. Lembro-me bem de como as frutas apareciam no verão. Particularmente torcia para que chegasse o verão e eu pudesse estar saboreando a sirigüela, o umbu-cajá, a cajarana, manga, etc.
Eu morava em uma rua numa cidade do interior da Bahia. À frente da minha casa moravam duas senhoras: Dona Rosa e Dona Antônia. Ambas já com idade avançada. Dona Rosa era extremamente simpática, já Dona Antônia, um pouco sisuda, contudo, agradável. Constantemente no verão, íamos na casa delas para solicitar que nos fornecessem o privilégio de desfrutar das sirigüelas que existiam no seu quintal. Dona Rosa aparecia na porta e com sua voz meiga nos mandava entrar. Lembro-me bem dela. Magrinha, olhos azuis, baixa e com as costas encurvadas. Sua irmã era mais cheia e aparentemente mais forte. Todas essas lembranças me vêm à mente acompanhadas de um fato bastante importante pra mim. Certo dia entrei na casa das senhoras e percebi uma aglomeração de pessoas. Fui a porta do quarto e percebi que haviam velas acesas e a doce senhora na cama. Ela estava quase imóvel. Só percebíamos o seu peito estufar e abaixar dando a noção de que estava ainda respirando. Vi quando uma senhora chegou com uma xícara de café e uma colher. Começava então a colocar o café na boca de Dona Rosa. Uma cena lastimável. Fiquei a tarde toda à beira da porta como se esperasse algo. Ouvia a todos conversarem e percebi que uma das senhoras falava a respeito de que não tinha mais jeito e que só esperavam a velha morrer. Eu observava Dona Rosa ainda respirando e torcendo para que ela pudesse surpreender a todos e levantasse da cama. Quem poderia agora me dar as sirigüelas? Aos poucos foi-se percebendo que a respiração dela ficava mais e mais lenta, até que cessou. Uma senhora veio e cobriu o rosto dela. Saí da casa sem perceber a profundidade do que tinha acontecido, contudo essa imagem não saiu da minha cabeça. Hoje percebo que aquele momento significou muito. Toda história vivida por uma pessoa se esvaindo até não existir quem pudesse de fato ouvir aquela doce voz e ver aqueles olhos azuis de ternura. Foi a primeira vez e talvez a única que vi a morte de perto. Ao mesmo tempo em que ela me pareceu ser muito natural. Entretanto, ver posteriormente a Dona Rosa em um caixão foi mais triste. Acompanhei o enterro e quando a terra foi jogada em cima do caixão, aquele barulho parecia ensurdecedor para mim. Via algumas pessoas pegando a terra com a mão e atirando. Me pareceu que queriam de fato se ver livre da senhora. Com o passar dos anos, Dona Antônia é encaminhada para um asilo e a velha casa é derrubada. Não havia mais sirigüelas, muito menos Dona Rosa. Havia a certeza de que um dia tudo pode acabar nesse mundo, tanto as sirigüelas, quanto as pessoas. Daí a incoerência de sonharmos sempre com a acumulação das riquezas se não duramos pra sempre. Pra sempre será, contudo, a imagem da bondade e da satisfação de fazer a alegria de uma criança com tão pouca coisa.
Daniel Cézar.
5 comentários:
Poxa Dani gostei muito viu
eh tao profundo e interessante
vc podia escrever um livro sabia?
gostei muito meu diretor preferido!!!!!!!!
jamile Freitas
Muito obrigado nega...
Devo escrever sim um dia...
Me emocionei com o texto tio..
Parabéns..!
Dan...QUE COISA LINDA esse texto!!!
Pude me ver transportada ao 'teu' mundo infantil por muito mais que os instantes em que o lia.
Sinto até agora a doce e triste sensação na melancólia de um sonho de criança perdido, com um misto de alegria sentida por ti pelas tantas vezes que o foi vivido ao comer aquelas ciriguelas - rsrs.
Vc é GENIAL! E já te disse isso (rs).
Bj GRANDE,
Gueu.
Poxa que história,pra levar pra cama e pensar muito com nossos atos, o que fazemos, a vida passa, e quando vimos ja morremos!!!!
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